Minha lista de blogs

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Terceiro soneto

Tuas graças roubaram do ocaso as cores!
Tua postura esbelta, teus olhos luzentes
Macularam o sangue das veias decentes
Das minhas mãos armadas de já murchas flores!

Tu és peste nascida nos castos verdores!
Como dos lírios, dos moços és orquidácea.
Pois te travestes da mais formosa falácia;
Pois me foste do peito a pior das dores!

Inebria-te, agora, com veneno amargo!
Semelhante sorte me fizeste entornar...
Afoga-te em rio de escárnio: no rio mais largo,

Pois secaram-me as águas, e esvaiu-se o ar!
Insistes, anjo belo, em ser tóxico embargo
Contra meu humilde anseio em poder te amar!


quarta-feira, 3 de junho de 2015

Apelo ao Sr. Eugène

Descansa o corpo na poltrona,
Degustando sua introversão dominical.
Traga, paciente, seu Montecristo,
Enquanto lê o original Diplomatique,
Através de sua estrategicamente posicionada bifocal,
Sob harmônico Ré menor de Sarabande.
Beberica seu Cheval Blanc,
Em calculado equilíbrio com o tabaco e o Roquefort.
Crianças e esposa deleitam-se,
Nos respectivos aposentos,
Com o indispensável ócio pós-prandial...
Mon Dieu!,
Fosse Delacroix vivo até hoje...

Vizinho de cá

O vizinho de lá é um bacana
- Melhor não há!
Mesmo alegre, mesmo sério
- Não importa!

O vizinho de lá exala
Seu anseio por prosperidade...
O vizinho de lá é próspero
Nos bons gozos da vida.

O vizinho de lá festeja.
Folião que não há igual!
Lá, ainda, tem sempre muita gente...

Dizem que o vizinho de lá é a própria Pasárgada!
Dizem ter mulheres bonitas.
Dizem ter magnos adornos.
Adornos, pra se ter ideia,
Iguais não possuía o Rei Sol!

O vizinho de lá é belo,
Daquelas belezas afrodisíacas...
Tem indescritível porte físico,
Daqueles de invejar Marte!

O vizinho de lá é bondoso, também.
De rosto leve e maçãs rosadas,
De mãos acolhedoras e braços abertíssimos!
De alma, até!, gentil.

No vizinho de lá tem retro-projetor.
Dizem que o sistema de som é coisa de cinema!
Os filmes lá são melhores...

Sem falar que seu carro é sempre o do ano,
Pra combinar com o cargo de presidência,
Por ter sido o funcionário do ano
- Incontáveis meses de perfeita dedicação.

Uma pena ter o vizinho de lá...
Ter como vizinho a própria plenitude...
Mas pena mesmo, de apertar o peito!,
É ter como vizinho
O vizinho de cá. Bem de cá de dentro!






Segundo soneto

Ruivos cachos de Vênus, rósea tez,
Venoso licor escarlate e casto,
Carnosos lábios e colo vasto,
Único fruto Perséfone a fez!

És verdura do Éden, és carnal!
Tens nos fartos seios fugaz ardor!
És das perenes relvas régia flor
Semeada em estéril polo austral!

Sê a estrela, sê meu corpo celeste,
Argênteo espectro no azul-noturno,
Sê mulher de verdadeira estrutura!

Sê divina, sê humana, mas veste
A causa minha - que espero, soturno,
Perderes as sobras de compostura!











Anomia

Malditos sejam os intestinos desajustados...
... A pregar peças com seus ácidos,
Além de extremamente fétidos, detritos viscerais!

Ah!, como aborrece a mim - e a tantos outros ventres -
Esse inoportuno companheiro e
Seu liquefeito contraparente...

Não, não os culpo, porém.
Há igual renitente farpa que lhes chateia.
Por infelicidade do destino, a genética
Presenteou-nos com uma moça irreverente!
Uma tal de Sra. Lactase,
Que em seu enzimático ofício pouco atua!

Encara com ar onipotente o sistema digestivo,
E simplesmente falta. Falta comigo e com todos os outros...
Decidiu (e pronto!) ser rebelde conosco e com nossa funcionalidade.
Resta-nos - anômalos organismos - pois, apalermados
Intestinos e uma irritante disfunção!...

Continua assim, que uma hora
essa diarreica anomia de ocasiões
vira-nos um grosseiro tumor intestinal!

Primeiro soneto

Formosos são os cânticos infantes
Da matinal alvura pueril.
Tange o horizonte nascente fio
E expande-se em anúncios galantes:

Terra e Céu se cortejam, e amigados
Estão com Sol, na carruagem celeste.
Cavalgando, juntos, de leste a oeste
Estruturam intrínsecos dourados!

Compõe-se, gradualmente, a presença
De Apolo, de seus hinos e tenores...
Acompanha, então, a Mãe Natureza!

Proferem conjuntamente a sentença
,Às beldades e aos perenes amores,
Que o vigor há de surgir, com certeza!








Bocas

"Pernas minhas entre outras trinta, ou mais...
Pés ante pés, uniformes no ato
- Sequência pasteurizada, de fato,
Pelas manhãs de trabalho normais..."

"Que dirão, na sé, de tua atitude?!
Teu corpo por desejos molestado!
Vil pederasta secularizado
Em capas de banal beatitude!"

"Só te expressa, filho, com propriedade,
E venera o vício intelectual,
Pois onde há ócio, prevalece o mal,
Além de manter plana a sociedade."

"Aristoi há de exaltar os valores
Referentes a Virtude e a Fortuna!
Há de exercer forte, em regência una,
O ofício de formador dos atores!"

"Patéticos os socialistas são!
Insanos utopistas. Dá-me nojo
Quando dizem que lhes sacia o bojo
Partes partilhadas de peixe e pão!"

Bocas e mais bocas...
... Não se lembram que cada meio material
Em que percorre o som varia?!
Não - para elas o som que sai é o que chega:
Som de boca e não de ouvido!
Vai-se, assim, diluindo os princípios da ondulatória...

Sofisma

Se vivo então respiro.
Se respiro então aspiro.
Se aspiro então desejo.
Se desejo então vivo...

La Traviata e temperos

     Enfim chego em casa. Logo na entrada percebo o barulho vindo do vizinho. Meu Deus, não é possível que terá outra festa! Haja paciência!
- Estão festejando de novo?!
- Boa noite, Fernando. Sim, o baile de sempre... Hoje é sexta, lembra?
- Me esqueci. Eles deveriam fazer o mesmo!
     Toda sexta-feira nosso vizinho dá esse tal baile.Maldito baile. Sempre o mesmo, com as mesmas músicas. Adoram as óperas, os cânticos animados, as trovas. O porque do anacronismo? Sei lá, e pouco me importa. Importa-me o ânimo. Quanto ânimo. Maldito ânimo! Tolice, afinal!
- Essa mania de erudição me dá nos nervos! Antes tivesse ficado de plantão...
- Bem, na próxima ficamos. Agora vem, Fernando, a comida que eu pedi já chegou...
- Que tem?
- O de sempre, né?! Não muda o nosso pacote delivery, não muda a comida.
- Ótimo! Para combinar com esse povo - o de sempre...
- Uma hora deve acabar. Já estou estressada, também! Não aguento essa gente esquisita...
 Aumenta-se o som.
"Libiamo, libiamo!..."
     Caminhamos à cozinha. Jantemos, então.
"... Ne'lieti callici!..."
- Por que veio mais cedo, Fernanda? Achei que você chegaria daqui a duas horas.
- Dores de cabeça. Elas não me largam...
"Libiamo ne'dolci fremiti!..."
- E esses fanfarrões pioram a enxaqueca! - eleva a voz, competindo com o que talvez possamos chamar de música. Eu não discordo.
- Não foi a única. Sempre tenho essas tais, não é? Já lhe contei sobre isso, não se recorda?
- Me lembro das suas queixas. Temos que nos consultar, não acha, Fernando?
- Báh! Besteira. Não temos esse tempo. Isso é muito...
- Realmente.
     Silêncio...
"Libiamo, amore fra i callici..."
     Confesso. Fomos uma única vez nessa, digamos, noite dançante. Logo que nos mudamos para o bairro. Insistiram para que ao menos experimentássemos. Disseram ser imperdível. Esquisitos... Uma gente estranha, isso sim! Viram a madrugada, com nada se importam esses farristas. Não param... Perde-se tempo. Maldito ânimo! Perdemos a noite de sexta e ainda todo um sábado. Acredita?! Explicaram o motivo da preferência musical, como que para justificar tamanha esquisitice. Não entendemos lhufas, pois eram estranhos.Também não valia a pena. Sorrimos, e pronto. Uma hora teria que acabar. Depois nunca mais voltamos, obviamente.
- Tempero.
- Como?
- Não há tempero nessa comida...
"Più caldi baci avrà!..."
- ...Nunca há! Onde está a pimenta, Fernanda?
- Não sei, achei que você a tivesse guardado...
- Merda! Não me lembro. Ela nunca está quando nós precisamos!
- Está sem gosto, Fernanda! O que me diz?
- Digo o mesmo...
"Tutto è follia, follia nel mondo!..."
- Mas que crime! Essa mesma música sempre... Essa erudição piora minha enxaqueca! Maldito italiano, alemão, javanês, que seja! O que me diz, Fernanda, o que?!
- Não discordo...
"La vita è nel triputio..."
- Eles sabem! Sabem que aqui não há disso! Não somos de folias! E mesmo assim insistem com essas baboseiras, ainda por cima difíceis! Perde-se tempo! - me exalto. Infelizes!
- Perde-se tempo! - repete Fernanda, também exaltada.
- Porra, Fernanda! Mas onde está a pimenta?! Temos que lembrar...
"Quando non s'ami ancora!..."
- Loucos! - grito. O que é isso? Onde já se viu? São um câncer para a sociedade...
- Um câncer, ouviram bem?!
" Godiam, fugace e rapido, Ell gaudio dell'amore!..."
- Eles não têm amor pela pátria, certo, Fernando?
- Certíssima! Mas onde está o tempero? No mínimo o sal...
- Não sei, não sei! Como poderia saber?
- Não poderia... Assim como eu também não poderia...
-... Pode ter ficado no vizinho, maldito seja...
"Ah si, godiamo, lá tazza..."
- Não. Quando nós fomos - como manda a boa educação  - levamos outra coisa... Mas não foram nossos temperos.
- Talvez, minha Fernanda, tenhamos esquecido de comprar a pimenta, da mesma forma que o sal. E falta a canela, essa é importante!
- A comida era tão boa... - mais uma vez, em nada eu discordo...
"La notte abella e il riso..."
- Mas que inferno! Essa música!
- Realmente! - bufa Fernanda. E bufo eu!
- Oras, mas que cabeça a nossa! Comida de esquisitos, esquisita é!
- Realmente!
     "...In questo paradiso ne sopra...". Após poucas garfadas... Não dá! Não presta o jantar desse jeito! Fosse só o dissabor da comida passava...
- Não adianta, vou dormir! Não devemos dar a mínima para esses daí...
- Exato! Vou já já. Hoje também não aguento terminar o prato. Mas deixe estar, logo passa a dor, logo para esse barulho...
     Saio. Agora o sono, amanhã eu compro esse tempero!